Por que São Paulo ama tanto sorvete?

“Sorvete é excepcional! Uma pena que não seja proibido!” — a frase, geralmente atribuída a Voltaire (ainda que não haja provas de que ele realmente a tenha dito), traduz bem a sensação de saborear a sobremesa: algo tão bom que parece até pecado.

Vitrine sorvetes da L'Albero dei Gelati
Vitrine sorvetes da L'Albero dei Gelati

Do picolé na praia às sorveterias artesanais de hoje, é difícil encontrar quem não goste de sorvete. E em São Paulo, mesmo a quilômetros do litoral, não é diferente. Sorbets, gelatos italianos, softs, milkshakes e tantas outras variações estão espalhados por toda a cidade — e com muito estilo. Não por acaso, os paulistanos lideram o consumo de sorvete no Brasil, segundo pesquisa da Associação Brasileira do Sorvete e Outros Gelados Comestíveis (ABRASORVETE), realizada em 2024.

A história do sorvete é antiga e cheia de versões. Há registros de sobremesas geladas semelhantes na China há mais de 4 mil anos e outras referências ao século II a.C., mas a origem exata ainda é incerta. O sorvete moderno, tal como conhecemos hoje, começa a ganhar forma entre os séculos XVI e XVII, na França e na Itália. No Brasil, no entanto, ele chegou pelo porto do Rio de Janeiro, na primeira metade do século XVIII e logo se espalhou pelo País.

O sorvete chega a São Paulo

Em meados do século XIX o sorvete começa a marcar presença na capital paulistana. A sobremesa logo caiu no gosto popular, mas, como ainda não existiam métodos adequados de refrigeração e conservação, era servida apenas em ocasiões especiais — muitas vezes com dia e horário marcados. Só cerca de 60 anos depois é que os paulistanos passaram a contar com um ponto fixo para se refrescar com um sorvetinho no calor tropical.

Sorveteria Alaska fundada em 1910. Trabalha à moda antiga, montando sobremesas para compartilhar, tipo banana split. A maior delas é a Gigante, que pesa aproximadamente um quilo e meio e é suficiente para até seis pessoas
Sorveteria Alaska fundada em 1910. Trabalha à moda antiga, montando sobremesas para compartilhar, tipo banana split. A maior delas é a Gigante, que pesa aproximadamente um quilo e meio e é suficiente para até seis pessoas

Em 1910, a primeira sorveteria é inaugurada na cidade. Fundada por um casal de italianos, a Alaska marcou época. Com ela, começa a popularização dos sorvetes servidos em taça pela cidade. Inicialmente no Brás, a sorveteria se muda depois para o bairro do Paraíso, onde por décadas se tornou um dos principais pontos de encontro da capital. Especialmente após a década de 60, quando foi adquirida por dois sócios portugueses de origem libanesa, a sorveteria ficou famosa por sabores inusitados como minsk, rum e damasco.

Infelizmente, após mais de 100 anos de funcionamento, a Alaska encerrou as atividades em 2019, mas sua importância vai além das bolas geladas cremosas. A sorveteria também foi pioneira no uso criativo do sorvete, apresentando ao público paulistano sobremesas que logo virariam clássicos, como sundaes, milkshakes e, especialmente, a banana split — ícone das décadas de 1940 e 1950, a sobremesa americana feita com duas metades de banana, bolas de sorvete, calda de chocolate e chantilly rapidamente conquistou os paulistanos e ganhou versões variadas por toda a cidade.

Na segunda metade do século passado, o sorvete se consolida em São Paulo e ganha novas formas de apresentação. Além dos montados, com calda, chantilly e cerejas, começam a surgir sobremesas mais elaboradas, como as cassatas de sorvete, inspiradas no tradicional bolo siciliano. Preparadas com camadas de sorvete de sabores variados, intercaladas com pão de ló e frutas cristalizadas, elas rapidamente conquistaram espaço nas vitrines das sorveterias.

Na Damp, é possível encontrargelato de mousse de uva,leite condensado com baunilha e outras variedades
Na Damp, é possível encontrargelato de mousse de uva,leite condensado com baunilha e outras variedades

Um bom exemplo é a versão servida pela Damp Sorvetes, no bairro do Ipiranga. Em atividade desde 1970, a Damp é a sorveteria mais antiga da cidade ainda em funcionamento e representa bem os estabelecimentos tradicionais do setor.

Enquanto as sorveterias conquistavam seu espaço no cotidiano paulistano, novas técnicas de produção industrial se espalhavam pelo mundo desde os anos 1940. O consumo de sorvete crescia exponencialmente, e potes e picolés passaram a tomar conta das geladeiras dos supermercados. O que antes era uma sobremesa eventual — servida em ocasiões específicas, com lugar e hora marcados — passou a fazer parte do dia a dia. Com isso, o consumo de sorvete cresceu exponencialmente, e potes e picolés passaram a ocupar cada vez mais espaço nas geladeiras dos supermercados.

Proprietária da Damp, Dona Dalmira
Proprietária da Damp, Dona Dalmira

O que antes era uma sobremesa eventual — reservada para ocasiões específicas, com hora e lugar marcados — passou a fazer parte da rotina. O sorvete se popularizou de vez na capital, e as esquinas de São Paulo foram ocupadas por marcas que marcaram gerações, como La Basque e Brunella.

O boom dos sorvetes artesanais

Em contraponto à explosão industrial, a última década foi marcada pela valorização dos sorvetes artesanais. Inspiradas no frescor e na tradição das antigas sorveterias, pipocam pela cidades novas casas que priorizam a qualidade dos ingredientes e a ausência de aditivos e conservantes em excesso. No bairro de Pinheiros, a Frida e Mina, inaugurada em 2013, se tornou um dos símbolos dessa nova onda. Conhecida pelos sabores criativos elaborados com ingredientes sazonais, a casa atrai filas que dobram o quarteirão aos finais de semana. Já no Morumbi, a Sorveteria São Lourenço ganhou destaque internacional ao figurar entre as 50 melhores do mundo nos rankings de 2022 e 2024.

Casquinha de Pistache da L'Albero dei Gelati
Casquinha de Pistache da L'Albero dei Gelati

Outro nome que ilustra bem essa revolução é a L’Albero dei Gelati, que se propõe a reinterpretar o gelato italiano em solo brasileiro. Trazida da Itália por Fernanda Pamplona — que trabalhou anos na matriz da marca —, a gelateria aposta em uma filosofia artesanal, natural e livre de atalhos industriais. “A ideia sempre foi unir a técnica italiana com os ingredientes brasileiros”, resume Fernanda.

Na prática, isso significa fazer gelato fresco todos os dias, sem emulsificantes, conservantes ou corantes. O leite vem direto da fazenda, os sorbets são adoçados, sempre que possível, com o próprio açúcar das frutas e não há um padrão rígido de sabor ou textura. “Quem manda é o ingrediente”, explica. Um exemplo? O sorvete de pistache nunca será da mesma cor: “A tonalidade depende do ingrediente e da torra, que a gente faz aqui mesmo, na loja”.

Essa relação direta e quase instintiva com os ingredientes causou certo estranhamento no começo. “O paulistano estava muito acostumado com a padronização — aquelas pastas prontas com cores vibrantes e sabores sempre iguais. Quando abri a loja, precisei sentar com muita gente, varrer a calçada, tomar café com os vizinhos. Era um trabalho de formiguinha para fazer as pessoas entenderem o que era o nosso gelato”, lembra.

Aos poucos, Fernanda foi conquistando o público com conversas, histórias e colheradas de gelato fresco feito na hora. “Mostro a diferença do sorvete fresquinho, conto de onde vem cada ingrediente.”

O Brasil na casquinha

No embalo da valorização dos sorvetes artesanais, São Paulo assiste ao florescimento de sorveterias cada vez mais especializadas.

A nova onda é protagonizada por pequenos negócios que apostam em inovação, ingredientes naturais — muitos deles brasileiros — e um olhar autoral sobre o fazer sorvete. Para o chef glacier e fundador da Escola Sorvete, Francisco Sant’Ana, esse movimento representa um novo capítulo para o setor. “Estamos vendo surgir uma geração de sorveterias pequenas, criativas e extremamente focadas na qualidade”, afirma.

Exemplos desse novo cenário não faltam. A Lumi Creamy, comandada pelo chef-confeiteiro Fabricio Luminato, aposta em sabores criativos com forte sotaque nacional. Entre os destaques estão o sorvete de manteiga de garrafa, carro-chefe da casa, e o curioso “não é pistache”, verde como o nome sugere, mas feito de semente de abóbora tostadinha. Os sabores sazonais são verdadeiras sobremesas — como bolo de rolo, dendê ou pudim — e são servidos em casquinhas de mandioca feitas ali mesmo.

Sorvete de frutas Cangote
Sorvete de frutas Cangote

Outra representante dessa nova leva é a Cangote Sorvetes, cuja pequena loja na Vila Buarque exibe uma vitrine repleta de brasilidade, especialmente com sabores inspirados no Nordeste. Ao todo, mais de quarenta receitas são desenvolvidas sem conservantes, corantes, emulsificantes artificiais ou gordura vegetal. Todos os sorvetes são feitos com ingredientes 100% brasileiros, e muitos deles são veganos — preparados apenas com água, açúcar e fruta — como os de cupuaçu, seriguela e coco verde. O cardápio é rotativo, respeita a sazonalidade dos insumos e aposta no equilíbrio entre frutas ácidas e doces. Diariamente, dez sabores são oferecidos, sendo apenas três fixos: cajá, tapioca e nata com goiaba. A casquinha, claro, também é artesanal e feita na casa.

“São micro negócios que apostam na identidade e na criatividade, trabalham apenas com ingredientes naturais, creme de leite de verdade e sem conservantes. Isso está ajudando a construir uma identidade para o sorvete brasileiro”, resume Francisco.

Sorvete de frutas Cangote
Sorvete de frutas Cangote

Prêmio Paladar: um tributo ao sorvete

Em meio a tantas histórias saborosas, o Prêmio Paladar decidiu prestar uma justa homenagem. No ano em que o caderno celebra seus 20 anos, o sorvete será protagonista em uma das categorias da trilha “Honra ao Mérito” — dedicada a reconhecer estabelecimentos e profissionais que moldaram o paladar (e o afeto) dos paulistanos.

Eleger o melhor sorvete da cidade? Difícil. Mas destacar quem construiu legado nessa trajetória gelada é mais do que justo — é necessário. Porque, no fim das contas, cada bola de sorvete também carrega um pedaço da história de São Paulo. As categorias serão reveladas ao longo de julho na nova plataforma digital do Paladar. Prepare a colher — e a memória afetiva.



from Estadão | As Últimas Notícias do Brasil e do Mundo https://ift.tt/Dp9YtTC
via IFTTT

Comentários